Argos Arruda Pinto

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quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Um argumento contra um criador inteligente da vida terrestre

Observação 01: Em seu livro A estranha ordem das coisas: as origens biológicas dos sentimentos e da cultura, (Damásio, 2018) o neurocientista português - estadunidense António Damásio faz uma espécie de resumo de outros dois livros dele, E o cérebro criou o homem, (Damásio, 2011) e O mistério da consciência (Damásio, 2000) sobre os nossos sentimentos e a consciência, para então entrar no assunto da formação da cultura com forte influência que os sentimentos exerceram. Para nós bastam as origens biológicas dos sentimentos. Você notará algumas palavras ou expressões estranhas no sentido do contexto ao qual ele se refere, como imagens, formação de imagens, qualia, etc. Aconselho uma pesquisa em IA para quem não estiver acostumado com elas, citando o nome dele, pois assim será mais rápido o entendimento desses termos. As expressões "imperativo homeostático" e "em imagens" serão explicados por mim logo abaixo. Não se precisa, evidentemente, ler os dois livros anteriores e este último desde o início. 

Observação 02: Utilizo o tema deste livro do António Damásio para construir o argumento deste texto e todas as citações serão do último capítulo, o treze, de mesmo nome que o livro. 

Damásio expressa uma surpresa e uma estranheza como ele mesmo diz literalmente sobre fatos biológicos relacionados aos sociais, que coloco integralmente abaixo. 

 

O título deste livro foi sugerido por dois fatos. O primeiro é que, 100 milhões de anos atrás, algumas espécies de insetos já haviam adquirido uma coleção de comportamentos, práticas e instrumentos sociais que podem, apropriadamente, intitular-se culturais quando comparados a seus análogos sociais humanos. O segundo fato é que, em um tempo ainda mais remoto, muito provavelmente há vários bilhões de anos, organismos unicelulares também apresentavam comportamentos sociais cujas linhas gerais condizem com aspectos de comportamentos socioculturais humanos. 

Esses fatos certamente contradizem uma noção convencional: a de que algo tão complexo como comportamentos sociais capazes de melhorar a gestão da vida só poderia ter surgido da mente de organismos evoluídos, não necessariamente humanos, mas complexos o bastante e suficientemente próximos dos humanos para engendrar o refinamento necessário. As características sociais sobre as quais escrevo apareceram nos primórdios da história da vida, são abundantes na biosfera e não precisaram esperar o surgimento na Terra de alguma coisa parecida com o ser humano. Isso é verdadeiramente estranho, inesperado, para dizer o mínimo. 

Um exame mais atento revela detalhes por trás desses fatos fascinantes, por exemplo, comportamentos cooperativos bem-sucedidos do tipo que tendemos a associar, e com razão, à sabedoria e maturidade no ser humano. No entanto, estratégias cooperativas não precisaram esperar que surgissem mentes sábias e maduras. Estratégias desse tipo possivelmente são tão antigas quanto a própria vida e nunca se manifestaram com maior brilhantismo do que no conveniente tratado celebrado entre duas bactérias: uma ambiciosa e atrevida, que quis apoderar-se de outra, maior e mais bem estabelecida. A batalha resultou em empate, e a bactéria atrevida tornou-se um satélite cooperativo da bactéria estabelecida. Os eucariotos, células com um núcleo e organelas complexas como as mitocôndrias, provavelmente nasceram dessa maneira, na mesa de negociações da vida. 

As bactérias da história descrita não possuem mente, quanto mais uma mente sábia. A bactéria atrevida opera como se concluísse que "se não pode vencê-la, junte-se a ela". Por sua vez, a estabelecida opera como se pensasse "eu bem que poderia aceitar essa invasora, se ela me oferecesse algo em troca". Mas, obviamente, nenhuma delas pensou [em] coisa alguma. Não houve reflexão mental, consideração manifesta de conhecimentos prévios, astúcia, ardileza, bondade, lisura ou conciliação diplomática. 

A equação do problema foi resolvida cegamente e a partir de dentro do processo, de baixo para cima, como uma opção que, analisando hoje, podemos ver que funcionou bem para os dois lados. No entanto, a solução foi moldada pelos requisitos imperativos da homeostase, e isso não foi mágica, exceto em um sentido poético. Ela consistiu em restrições físicas e químicas concretas aplicadas ao processo da vida, dentro das células, no contexto de suas relações físico-químicas com o meio ambiente [...] O fascinante processo de cooperação não se sustenta sozinho, sem ajuda. As bactérias são capazes de perceber a presença de outras, graças a sondas químicas instaladas em suas membranas, e podem até distinguir as suas parentes das forasteiras por meio da estrutura molecular dessas sondas. Esse é um modesto precursor da nossa percepção baseada em imagens. 

Esses surgimentos em ordem tão estranha revelam o imenso poder da homeostase. O indomável imperativo homeostático, atuando por tentativa e erro, selecionou naturalmente soluções comportamentais disponíveis para vários problemas da gestão da vida. Os organismos vasculharam e avaliaram, impremeditadamente, a física de seu ambiente e a química dentro de suas membranas e, da mesma forma, chegaram a soluções no mínimo adequadas, mas frequentemente boas para a manutenção e a prosperidade da vida. O espantoso é que, quando configurações de problemas comparáveis foram encontradas em outras ocasiões, em outros pontos da emaranhada evolução das formas de vida foram encontradas as mesmas soluções. A tendência a determinadas soluções, a esquemas semelhantes, a algum grau de inevitabilidade, resulta da estrutura e das circunstâncias de organismos vivos e de sua relação com o ambiente, e depende da homeostase de forma assombrosa. (Damásio, 2018, p. 267) 

 

 

Não é de se espantar essa surpresa de Damásio porque parece que funções biológicas simples, de organismos simples, aparecem em organismos muito mais complexos, se repetindo, embora de forma mais complexa, sofisticadas e misturadas no tempo.  

Então Damásio cita o seu principal argumento, um "poder", em todo o livro, o imperativo homeostático. 

 

Homeostático vem de homeostase ou homeostasia, a qual Damásio lamenta ser este termo algo praticamente esquecido por cientistas, não se dando o verdadeiro valor que possui.  

Homeostase é a capacidade de um sistema, e agora se pode falar em sistemas gerais e não apenas orgânicos, de manter variáveis em níveis de valores aceitáveis dentro de certos limites, contribuindo com a própria integridade do sistema ou de partes dele. Um dos exemplos mais simples que posso mencionar é a regulação da temperatura corporal e, sem exageros, não haveria nenhum ser vivo na Terra se não existisse a homeostase. E por isso ele utiliza a palavra imperativo pela importância desse mecanismo.   

 

A expressão “em imagens” pode ser explicada igualmente de maneira simples: se alguém é picado por uma abelha, ele não apenas sente dor e como sabe onde foi, mas faz uma imagem mental consciente da própria dor. Se for uma ponta de uma pedra, dolorida ou não, a imagem será diferente. Isso contribuiu em nossa evolução, como exemplos, deixando-nos cientes em memórias do que dói mais, o que evita, pois a dor é muito intensa sempre, etc.  

 

Para Damásio, as faculdades mentais superiores mais estranhas surgidas em ordem diversa são os sentimentos e a consciência. Poderíamos imaginar, sem sombra de dúvidas, que elas partiram de sistemas em seres complexos, se não em nós humanos, tardiamente na história da evolução. Não é bem assim.  

Cientistas e filósofos citam os córtices cerebrais, estruturas recentes nos cérebros humanos, como os responsáveis por este empreendimento. Eles são regiões do cérebro envolvidas em funções importantes como percepção sensorial, pensamento, memória e tomada de decisões, desempenhando um papel crucial na complexidade das capacidades cognitivas humanas. A subjetividade e o problema dos qualia entram neste assunto. 

Na realidade, como diz Damásio (2018), "núcleos do tronco encefálico e do telencéfalo, todos localizados em nível inferior ao córtex cerebral, são as estruturas cruciais para sustentar os sentimentos e, por extensão, os qualia, que são parte da nossa compreensão da consciência" (p. 271). 

 

Veja mais duas citações dele: "sentimento e subjetividade são faculdades antigas e não dependeram do complexo córtex cerebral dos vertebrados superiores, quanto mais dos humanos, para fazer sua estreia" (Damásio, 2018, pg. 272). E: 

 

 

Em resumo, a construção daquilo que se tornou para nós os sentimentos e a consciência aconteceram de modo gradual, incremental, mas irregular, em linhas separadas da história evolucionária. O fato de podermos encontrar tanta coisa em comum nos comportamentos sociais e afetivos de organismos unicelulares, esponjas e hidras, cefalópodes e mamíferos sugere uma raiz comum para os problemas da regulação da vida em diferentes seres e também uma solução comum a todos: obedecer ao imperativo homeostático. (Damásio, 2018, p. 273) 

 

 

Existem mais exemplos no capítulo treze do livro de Damásio, mas escolhi apenas estes para o texto não ficar tão grande. 

 

Ao mencionar a consciência na citação acima, lembro a você leitor, que ela não é algo do tipo "eu sou eu porque sou" e sim "eu sou eu porque sou e sinto quem sou". Pois bem, razão e sentimentos se fundem quando você olha para dentro de si percebendo e sentindo quem é você. Ela não existiria possuindo apenas uma destas propriedades. Quer dizer, para existir a consciência deve-se ter razão e sentimentos, mas eles surgiram "de modo gradual, incremental, mas irregular em linhas separadas da história evolucionária". 

 

O meu argumento deste texto reside nos exemplos do capítulo treze do livro do Damásio, os quais selecionei aqueles que achei bem relevantes, os comportamentos sociais dos seres vivos por ele descrito, e, especificamente este último, a formação irregular, descontínua, de duas bases que são das mais importantes do cérebro humano, sentimentos e consciência. Por consequência, dá para imaginar o quão é grande o número de situações semelhantes em nossos corpos e nos outros seres vivos. 

Um criador, inteligente, projetista, designer, etc., não formaria indivíduos dos mais simples aos mais complexos, tão distantes na história da própria vida, com tamanha falta de ordenação. Imagine buscar o quanto você conseguir, de exemplos afins. 

 

António Damásio escreveu este livro na intenção de mostrar como os sentimentos foram importantes para a cultura humana, e, ao resumir de forma brilhante os assuntos dos sentimentos e organismos, vi uma possibilidade de escrever este texto questionando a existência dos seres vivos e dos humanos a partir de um criador inteligente. 

 

 

Referências 

Damásio, A. (2000). O Mistério da Consciência. São Paulo: Companhia das Letras. 

Damásio, A. (2011). E o cérebro criou o homem. São Paulo: Companhia das Letras. 

Damásio, A. (2018). A estranha ordem das coisas: as origens biológicas dos sentimentos e da Cultura. São Paulo: Companhia das Letras.