Argos Arruda Pinto

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terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Sentimentos, homeostase, vida e cultura

Observação: este texto foi literalmente copiado, a menos da Introdução, de uma seção do primeiro capítulo do livro A estranha ordem das coisas: as origens biológicas dos sentimentos e da cultura, do neurocientista português naturalizado estadunidense António Damásio, páginas 34, 35, 36 e 37, de nome "Sobre a condição humana", na seção HOMEOSTASE, abaixo, em aspas, após a Introdução, feita por mim. 

Fiz assim porque Damásio descreve com absoluta precisão e resumo sobre a importância da homeostase na regulação e controle no funcionamento geral dos corpos dos seres vivos, indo dos primeiros unicelulares, passando pelos multicelulares, seres vivos sociáveis, nós, os humanos, até a criação das nossas culturas.  

As notas enumeradas em 11 e 12 estão deste modo pois pertencem a esta parte do primeiro capítulo, comigo reproduzindo fielmente o texto do livro, com a referência sendo, evidentemente, o livro de Damásio nas páginas citadas.  

 

Introdução  

 

A homeostase ou homeostasia é a capacidade de um sistema ou subsistema em manter certas variáveis internas sob controle, dentro de faixas entre um mínimo e um máximo, a fim de não haver problemas de diversos tipos em regiões ou no todo dentro do sistema. Ela, então, mantém o ambiente interno estável, apesar das mudanças no ambiente externo. Isso é crucial para o funcionamento saudável dos sistemas, organismos vivos, etc. 

Um exemplo muito simples e comum é a regulação da temperatura corporal deixada por volta de 36,6 graus Celsius. Outro, mais abrangente, é o hemograma completo de alguém. São dezenas de íons, moléculas, substâncias, como a glicose, colesterol, triglicérides, ácido úrico, os eletrólitos sódio, potássio e cálcio, tratando da transmissão nervosa e contração muscular, etc. e a realização de funções como a manutenção do pH sanguíneo por volta de 7,4, importante em reações bioquímicas, etc. 

Mas a homeostase não se refere apenas aos ambientes internos dos seres vivos, e sim em sistemas formados por estes, ou seja, os sistemas sociais, de organismos que vivem em grupos e os nossos também. Exemplo: 

Família: A unidade básica de qualquer sociedade, responsável por educar e socializar os indivíduos desde a infância. 

Educação: As escolas e universidades que transmitem conhecimento e habilidades necessárias para o desenvolvimento pessoal e profissional. 

Economia: Os mercados e instituições financeiras que regulam a produção, distribuição e consumo de bens e serviços. 

Governo: As entidades que criam e implementam leis, políticas e regulamentos para manter a ordem e o bem-estar social. 

Saúde: Hospitais, clínicas e outros serviços que garantem o cuidado e a manutenção da saúde pública. 

Enfim, sem a homeostase, que a esta altura você já percebeu que se trata de regulação e controle, não há vida, sociedades, culturas, povos ou países. 

 

"HOMEOSTASE  

 

Como podemos conciliar a ideia - aparentemente razoável - de que sentimentos motivaram soluções culturais inteligentes para problemas trazidos pela condição humana com o fato de que bactérias desprovidas de mente apresentam comportamentos so­cialmente eficazes, cujos contornos prenunciam algumas respostas culturais humanas? Qual é a linha que une esses dois conjuntos de manifestações biológicas que são temporalmente separados por bilhões de anos de evolução? Acredito que o terreno comum e a linha podem ser encontrados na dinâmica da homeostase.  

Homeostase é o conjunto fundamental de operações no cer­ne da vida, desde seu início mais antigo — e há muito tempo desa­parecido nos primórdios da bioquímica — até o presente. É o imperativo poderoso, impensado, tácito, cujo cumprimento per­mite, a cada organismo vivo, pequeno ou grande, nada menos do que perdurar e prevalecer. A parte do imperativo homeostático que diz respeito a 'perdurar' é clara: ele permite a sobrevivência e é considerada indiscutível, sem nenhuma referência ou reverência específica quando se fala em evolução de qualquer organismo ou espécie. A parte da homeostase que diz respeito a 'prevalecer' é mais sutil e raramente reconhecida. Ela assegura que a vida é regu­lada não apenas em uma faixa compatível com a sobrevivência, mas também conducente à prosperidade, a uma projeção da vida no fu­turo de um organismo ou espécie.  

Os sentimentos são a própria revelação, a cada mente indivi­dual, da condição da vida no respectivo organismo, expressa ao longo de uma faixa que vai do positivo ao negativo. A homeostase deficiente expressa-se por sentimentos em grande medida negati­vos, enquanto sentimentos positivos expressam níveis apropri­ados de homeostase e ensejam aos organismos oportunidades vantajosas. Sentimentos e homeostase relacionam-se mutuamente em um grau acentuado e de um modo consistente. Sentimentos são as experiências subjetivas do estado da vida, isto é, da homeos­tase, em todas as criaturas dotadas de mente e de um ponto de vista consciente. Podemos dizer que os sentimentos são os repre­sentantes mentais da homeostase. ¹¹ 

Lamentei que eles tenham sido negligenciados na história natu­ral das culturas, mas a situação é ainda pior quando falamos em ho­meostase e vida, que se veem totalmente deixadas de lado. É bem verdade que Talcott Parsons, um dos mais renomados sociólogos do século XX, invocou a noção de homeostase em relação a sistemas so­ciais, porém, em suas mãos, o conceito não foi associado à vida ou a mecanismos. Parsons é um bom exemplo da negligência dos senti­mentos na concepção das culturas. Para ele, o cérebro foi o alicerce orgânico da cultura, por ser o 'órgão primário para controlar opera­ções complexas, notavelmente as de habilidades manuais, e coordena as informações visuais e auditivas'. Acima de tudo, o cérebro foi 'a base orgânica da  

capacidade de aprender e manipular símbolos'. ¹²  

A homeostase guiou, de modo não consciente e não delibera­do, seu desenho prévio, a seleção de estados de organismos biológicos capazes não só de manter a vida, mas também de promover a evolução de espécies encontradas nos diversos ra­mos da árvore evolucionária. Essa concepção, a que mais condiz com as evidências físicas, químicas e biológicas, é notavelmente diferente da concepção convencional e mais pobre de homeostase, que se limitava à regulação 'equilibrada' das operações da vida.  

A meu ver, o inelutável imperativo da homeostase é o gover­nador  

onipresente da vida em todos os seus aspectos. A homeosta­se vem sendo a base do valor na seleção natural, a qual, por sua vez, favorece os genes — e, consequentemente, os tipos de orga­nismos — que apresentam a homeostase mais inovadora e efi­ciente. O desenvolvimento do aparelho genético, que ajuda a re­gular a vida no nível ótimo e a transmiti-la aos descendentes, não é concebível sem a homeostase.  

Considerando o que foi dito, podemos propor uma hipótese de trabalho entre sentimentos e cultura. Os sentimentos, como representantes da homeostase, são os catalisadores das respostas que iniciaram as culturas humanas. Isso é plausível? É concebível que sentimentos possam ter motivado as invenções intelectuais que deram aos seres humanos (1) as artes, (2) a investigação filosófica, (3) as crenças religiosas, (4) as regras morais, (5) a justiça, (6) o sistema de governança política e as instituições econômicas, (7) a tecnologia, (oito) a ciência? Diria veemente que sim. Posso argumentar que as práticas ou os instrumentos culturais em cada uma dessas oito áreas necessitaram que fosse sentida uma situação real ou antevista de declínio homeostático (por exemplo, dor, sofrimento, grande carência, ameaça, perda) ou de possível benefício homeostático (algum resultado recompensador), e que sentimentos funcionaram como o motivo para explorar, usando os instrumentos do conhecimento e da razão, as possibilidades de reduzir uma necessidade ou de aproveitar a abundância denotada por estados recompensadores.  

Mas esse é apenas o começo da história. A consequência de uma resposta cultural bem-sucedida é o declínio ou o cancelamento do sentimento motivador, um processo que requer a monitoração de mudanças na situação homeostática. Por sua vez, a adoção das respostas intelectuais e sua inclusão em um corpus cultural - ou seu abandono - são um processo complexo que resulta de interações de vários grupos sociais no decorrer do tempo. Esse processo depende de numerosas características dos grupos, desde tamanho e história passada até localização geográfica e relações internas e externas de poder. Envolve etapas subsequentes nas esferas do intelecto e do sentimento - por exemplo, quando surgem conflitos culturais, entram em cena sentimentos negativos e positivos, que contribuem para resolver ou agravar os conflitos.  

O processo faz uso da seleção cultural."  

 

Notas  

 

11. Como já dissemos, a relação consistente entre sentimentos rompe-se durante sentimentos intensos. A tristeza extrema não necessariamente expressa uma deficiência extrema de homeostase básica, embora possa resultar nessa deficiência e até ser responsável pelo suicídio. A tristeza e a depressão circunstanciais expressam situações sociais desfavoráveis, e, em circunstâncias assim, sentimentos realmente atuam como indicadores de perigo iminente para a regulação homeostática.  

12. Talcott Parsons, "Evolutionary Universals in Society" (American  

Sociological Review, n. 3, pp. 339-57, 1964); "Social Systems and the  

Evolution of Action Theory", 1980 (Ethics, v. 90, n. 4, pp. 608-11,  

1980). As ideias de outros pensadores das ciências sociais - por  

exemplo, Pierre Bourdieu, Michel Foucault e Alain Touraine - são mais fáceis de traduzir para a minha perspectiva biológica.  

 

Referência  

 

DAMÁSIO, António Damásio. A Estranha Ordem das Coisas: As Origens Biológicas dos Sentimentos e da Cultura. 1. ed. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2018. p. 34-37. 

 

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